— COMENTÁRIOS DE ALVO DUMBLEDORE SOBRE —
“O bruxo e o caldeirão saltitante”
UM VELHO BRUXO GENEROSO resolve dar uma lição ao
filho insensível, apresentando-lhe uma amostra do sofrimento dos trouxas
locais. Desperta assim a consciência do jovem mago, que concorda em usar sua
magia em benefício dos vizinhos não-mágicos. A primeira vista, uma fábula
simples e comovente, e ao crer nisso, a pessoa se revelaria uma pobre inocente.
Uma história pró-trouxas, retratando um
pai que ama os trouxas e é superior em magia a um filho que os detesta? É no
mínimo surpreendente que qualquer cópia da versão original desse conto tenha
sobrevivido às chamas a que frequentemente foi lançada. Beedle estava fora de
sintonia com seu tempo ao pregar uma mensagem de amor fraternal aos trouxas.
No início do século XV, a perseguição
de bruxos se intensificava por toda a Europa. Muitos na comunidade mágica
achavam, com toda a razão, que se oferecer para lançar um feitiço no porco
doente do vizinho trouxa equivalia a se oferecer para buscar lenha para sua
pira [1].
“Que os trouxas se arranjem sozinhos!”,
bradavam os bruxos ao mesmo tempo em que se afastavam cada vez mais dos seus
irmãos não-mágicos, um movimento que culminou no Código Internacional de Sigilo
em Magia, em 1689, data em que eles entraram por livre e espontânea vontade na
clandestinidade.
[1] É verdade que os bruxos e bruxas legítimos tinham razoável experiência em escapar da fogueira, do cepo e da forca (ver meus comentários sobre Lisette de Lapin nas notas sobre “Babbitty, a Coelha, e seu Toco Gargalhante”). Contudo, ocorreram de fato numerosas mortes: Sir Nicholas de Mimsy-Porpington (em vida, um bruxo na corte real e, na morte, o fantasma da Torre da Grifinória) revê sua varinha confiscada antes de ser trancado em uma masmorra, e assim ficou impedido de usar magia para fugir à sua execução. E as famílias bruxas eram particularmente sujeitas a perder membros mais jovens, cuja inabilidade para controlar seus poderes mágicos os tornava conspícuos e vulneráveis aos caçadores de bruxos.
Contudo, sendo as crianças como são, o
grotesco caldeirão saltitante cativou sua imaginação. A solução foi eliminar a
moral pró-trouxa, mas preservar o caldeirão verruguento, e, já na metade do
século XVI, uma nova versão do conto circulava amplamente entre as famílias
bruxas. Na história revista, o caldeirão saltitante protege um inocente bruxo
dos seus vizinhos armados de archotes, afugentando-os de sua cabana,
capturando-os e engolindo-os inteiros. No final da história, quando a panela já
consumiu a maioria dos vizinhos, o bruxo obtém, dos poucos aldeões que
restaram, a promessa de que o deixarão praticar sua magia em paz. Em troca, ele
instrui a panela a devolver as vítimas, que são devidamente arrotadas de suas
profundezas, ligeiramente estropiadas. Até hoje, algumas crianças bruxas ouvem
apenas esta versão revista contada por seus pais (em geral antitrouxas), e a
original, se e quando a lêem, é uma grande surpresa.
Conforme sugeri anteriormente, no
entanto, o sentimento pró-trouxa não foi a única razão pela qual “O Bruxo e o Caldeirão Saltitante”
atraiu indignação.
À medida que a caça aos bruxos se encarniçava, as
famílias bruxas começaram a levar vidas duplas, usando Feitiços de Ocultação
para proteger a si mesmas. Por volta do século XVII, qualquer bruxo, homem ou
mulher, que confraternizasse com trouxas se tornava suspeito, e até
marginalizado em sua própria comunidade. Entre os muitos insultos lançados
contra os pró-trouxas (os sugestivos epítetos de “chafurdeiro”, “lambe-bosta” e
“baba-ralé” datam desse período), havia a acusação de praticarem uma magia
ineficaz ou inferior.
Bruxos influentes da época, como Bruto Malfoy,
editor de Feitiçaria Aguerrida, um periódico anti-trouxa, perpetuou o
estereótipo de que um bruxo amante de trouxas era tão mágico quanto um bruxo
abortado [2].
[2] [O bruxo abortado ou aborto é o filho de pais bruxos que não possui poderes mágicos. Tal ocorrência é rara. Os bruxos e bruxas filhos de pais trouxas são muito mais comuns. JKR]
Em 1675, Bruto escreveu:
Isto
podemos afirmar com segurança: qualquer bruxo que demonstre apreciar a
sociedade dos trouxas tem uma fraca inteligência e uma mágica tão débil e digna
de pena que ele só pode se sentir superior quando se cerca de porqueiros
trouxas. Nada é um sinal mais infalível de mágica ineficaz do que a fraqueza
para conviver com não-mágicos.
Este preconceito foi gradualmente se
extinguindo em face da avassaladora evidência de que alguns dos bruxos [3]
mais brilhantes do mundo foram, para usar o termo comum, “amantes dos trouxas”.
[3] Como eu próprio.
A objeção final a “O Bruxo e o Caldeirão Saltitante” ainda hoje permanece viva em
certos setores. Beatrix Bloxam (1794-1910), autora do abominável Os Contos
do Chapéu-de-Sapo, foi, talvez, quem melhor resumiu a questão.
A Sra. Bloxam acreditava que Os
Contos de Beedle, o Bardo prejudicavam as crianças por sua “mórbida preocupação com assuntos horrendos
como morte, doença, derramamento de sangue, magia perversa, personagens
perniciosos, e efusões e erupções corporais dos tipos mais repugnantes”. A
Sra. Bloxam reuniu uma coleção de histórias antigas, inclusive várias de
Beedle, e reescreveu-as de acordo com os seus ideais, que, em suas palavras, “incutiam nas mentes puras dos nossos
anjinhos, saudáveis pensamentos de felicidade, mantinham o seu doce repouso
livre de sonhos maus e protegiam a preciosa flor de sua inocência”.
Lemos no parágrafo final da pura e
valiosa reescritura de “O Bruxo e o
Caldeirão Saltitante”:
Então a panelinha dourada dançou de prazer — tim
tirim tim! — batendo seus pezinhos rosados! Willyzinho tinha curado as
barriguinhas dodóis de todas as bonequinhas, e a panelinha ficou tão feliz que
se encheu de docinhos para Willyzinho e suas bonequinhas!
— Mas não se esqueça de escovar os seus dentinhos!
— gritou a panela.
E Willyzinho abraçou e beijou o caldeirão
saltitante e prometeu sempre ajudar as bonequinhas e jamais voltar a ser
ranzinza.
O conto da Sra. Bloxam provocou a mesma
reação em gerações de crianças bruxas: incontroláveis ânsias de vômito,
seguidas por imediatos pedidos para que alguém levasse o livro e o
transformasse em pasta.
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