sexta-feira, 31 de agosto de 2012

OS CONTOS DE BEEDLE, O BARDO




2

A FONTE DA SORTE


No alto de um morro, em um jardim encantado envolto por muros altos e protegido por poderosa magia, jorrava a Fonte da Sorte. Uma vez por ano, entre o nascer e o pôr-do-sol do dia mais longo do ano, um único infeliz recebia a oportunidade de competir para chegar à fonte, banhar-se em suas águas e ter sorte a vida inteira. No dia aprazado, centenas de pessoas viajavam de todo o reino para chegar ao jardim antes do alvorecer. Homens e mulheres, ricos e pobres, jovens e velhos, dotados ou não de poderes mágicos reuniam-se no escuro, cada qual na esperança de ser o escolhido para entrar no jardim.
Três bruxas, com seus problemas e preocupações, encontraram-se nas cercanias da multidão, e contaram umas às outras suas tristezas enquanto esperavam o sol nascer.
A primeira, cujo nome era Asha, sofria de uma doença que nenhum curandeiro conseguia eliminar. Ela esperava que a fonte fizesse desaparecer os seus sintomas e lhe concedesse uma vida longa e feliz.
A segunda, cujo nome era Altheda, tivera sua casa, seu ouro e sua varinha roubados por um bruxo malvado. Ela esperava que a fonte a aliviasse de sua fraqueza e pobreza.
A terceira, cujo nome era Amata, fora abandonada por um homem a quem amava profundamente, e acreditava que seu coração partido jamais se recuperaria. Esperava que a fonte aliviasse sua dor e saudade.
Apiedando-se umas das outras, as três mulheres concordaram que, se lhes coubesse a chance, elas se uniriam e tentariam chegar à fonte juntas.


O primeiro raio de sol rasgou o céu, e uma fresta se abriu no muro. A multidão avançou, cada pessoa exigindo, aos gritos, a bênção da fonte. Plantas rastejantes do interior do jardim serpearam pela massa ansiosa e se enrolaram na primeira bruxa, Asha. Ela agarrou o pulso da segunda bruxa, Altheda, que segurou com força as vestes da terceira bruxa, Amata. E Amata se enredou na armadura de um cavaleiro de triste figura que montava um cavalo esquelético. As plantas rastejantes puxaram as três bruxas pela fresta do muro, e o cavaleiro foi derrubado do seu ginete atrás delas.
Os gritos furiosos da multidão desapontada se ergueram no ar matinal, e silenciaram quando os muros do jardim se fecharam mais uma vez.
Asha e Altheda se zangaram com Amata, que, acidentalmente, trouxera junto o cavaleiro.
— Apenas um pode se banhar na fonte! Já será bem difícil decidir qual de nós será, sem adicionar mais um!
Ora, o Cavaleiro Azarado, como era conhecido nas terras além-muros, observou que as mulheres eram bruxas e, não sendo ele dotado de magia, nem de grande perícia em torneios e duelos com espadas, nem de nada que o distinguisse como homem não mágico, ficou convencido de que não havia esperança de chegar à fonte antes das três mulheres. Anunciou, portanto, sua intenção de sair do jardim. Ao ouvir isso, Amata se aborreceu também.
— Medroso! — ela o censurou — Desembainhe sua espada, Cavaleiro, e nos ajude a atingir a nossa meta.
E, assim, as três bruxas e o infeliz cavaleiro se aventuraram pelo jardim encantado, onde ervas raras, frutos e flores cresciam em abundância à margem de caminhos ensolarados. Eles não encontraram obstáculo algum até alcançar o sopé do morro em que se erguia a fonte.
Ali, enrolado na base do morro, havia um monstruoso verme branco, inchado e cego. À aproximação do grupo, ele virou uma cara feia e malcheirosa e proferiu as seguintes palavras:

“Paguem-me a prova de suas dores”.

O Cavaleiro Azarado sacou a espada e tentou matar o bicho, mas a espada se partiu. Então Altheda atirou pedras no verme, enquanto Asha e Amata experimentaram todos os feitiços que poderiam subjugá-lo ou hipnotizá-lo, mas o poder de suas varinhas não foi mais eficaz do que a pedra da amiga ou a espada do cavaleiro: o verme não quis deixá-los passar.
O sol foi subindo sempre mais alto no céu e Asha, desesperada, começou a chorar. Então o enorme verme encostou o focinho no rosto dela e bebeu suas lágrimas. Saciada a sede, o verme deslizou para um lado e sumiu por um buraco no chão. Exultantes com o sumiço do verme, as três bruxas e o cavaleiro começaram a subir o morro, certos de que chegariam à fonte antes do meio-dia.
A meio caminho da subida íngreme, porém, eles encontraram palavras gravadas no chão.

“Paguem-me os frutos do seu árduo trabalho”.

O Cavaleiro Azarado apanhou sua única moeda e colocou-a na encosta relvada, mas ela rolou para longe e se perdeu. As três bruxas e o cavaleiro continuaram a subir, e, embora tivessem andado durante horas, não avançaram um único passo, o topo continuava distante e a inscrição permanecia no chão diante deles.
Todos se sentiram desanimados quando viram o sol passar sobre suas cabeças e começar a declinar em direção ao longínquo horizonte, mas Altheda andou mais rápido e, empenhando mais esforço do que os demais, estimulava-os a seguir seu exemplo, embora tampouco avançasse na subida do morro encantado.
— Coragem, amigos, não fraquejem! — gritava ela, enxugando o suor do rosto.
A medida que as gotas caíam, cintilantes, na terra, a inscrição que bloqueava o caminho desaparecia, e eles descobriram que podiam prosseguir.
Encantados com a remoção do segundo obstáculo, correram para o alto o mais rápido que puderam, até que, por fim, avistaram a fonte, refulgindo cristalina em meio a árvores e flores. Antes de alcançá-la, no entanto, encontraram barrando o seu caminho um riacho que circundava o topo do morro. No fundo da água transparente havia uma pedra lisa com as seguintes palavras:

“Paguem-me o tesouro do seu passado”.

O Cavaleiro Azarado tentou atravessar o curso d’água flutuando sobre seu escudo, mas afundou. As três bruxas o tiraram de dentro do riacho e tentaram saltar por cima da água, mas o riacho não as deixou atravessar, e todo o tempo o sol ia baixando pelo céu. Eles começaram, então, a refletir sobre o significado da mensagem na pedra, e Amata foi a primeira a compreendê-la. Apanhando a varinha, apagou da mente todas as lembranças dos momentos felizes que passara com o seu amor desaparecido e deixou-as cair na correnteza. O riacho as levou para longe, deixando aparecer pedras planas e, finalmente, as três bruxas e o cavaleiro puderam atravessar em direção ao topo do morro.
A fonte refulgiu diante dos quatro, emoldurada pelas ervas e flores mais raras e mais belas que jamais tinham visto. O céu coloriu-se de vermelho, e chegou a hora de decidir qual deles iria se banhar. Antes, porém, que chegassem a uma conclusão, a franzina Asha tombou no chão. Exausta com o esforço da subida, estava à beira da morte. Seus três amigos a teriam carregado até a fonte, mas Asha, em agonia mortal, lhes pediu que não a tocassem.
Então Altheda se apressou a colher as ervas que julgou mais úteis, misturou-as na cabaça de água do Cavaleiro Azarado e levou a poção à boca de Asha. Na mesma hora, Asha conseguiu se pôr de pé. Além disso, todos os sintomas de sua terrível enfermidade tinham desaparecido.
— Estou curada! — exclamou ela — Não preciso da fonte, deixem Altheda se banhar!
Altheda, porém, estava ocupada colhendo mais ervas em seu avental.
— Se fui capaz de curar essa doença, posso ganhar muito ouro! Deixem Amata se banhar!
O Cavaleiro Azarado se inclinou e, com um gesto, indicou a fonte a Amata, mas ela sacudiu a cabeça. O riacho tinha lavado todos os seus desapontamentos de amor, e ela percebia agora que o antigo amado fora insensível e infiel, e que era uma grande felicidade ter se livrado dele.


— Bom cavaleiro, o senhor deve se banhar, em recompensa por toda a sua nobreza! — disse ela ao Cavaleiro Azarado.
Então ele avançou a armadura tinindo aos últimos raios do sol poente e se banhou na Fonte da Sorte, admirado por ter sido o escolhido entre centenas de outros e atordoado com a sua inacreditável fortuna.
Quando o sol se pôs no horizonte, o Cavaleiro Azarado se ergueu das águas sentindo-se glorioso com o seu triunfo, e se atirou, ainda vestindo a armadura enferrujada, aos pés de Amata, a mulher mais bondosa e bela que já contemplara. Alvoroçado com o sucesso, pediu sua mão e seu coração, e Amata, não menos feliz, percebeu que encontrara um homem que merecia os dois.
As três bruxas e o cavaleiro desceram o morro juntos, de braços dados, e os quatro levaram vidas longas e venturosas, sem jamais saber nem suspeitar que as águas da fonte não possuíam encanto algum.









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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

OS CONTOS DE BEEDLE, O BARDO




COMENTÁRIOS DE ALVO DUMBLEDORE SOBRE
“O bruxo e o caldeirão saltitante”


UM VELHO BRUXO GENEROSO resolve dar uma lição ao filho insensível, apresentando-lhe uma amostra do sofrimento dos trouxas locais. Desperta assim a consciência do jovem mago, que concorda em usar sua magia em benefício dos vizinhos não-mágicos. A primeira vista, uma fábula simples e comovente, e ao crer nisso, a pessoa se revelaria uma pobre inocente.
Uma história pró-trouxas, retratando um pai que ama os trouxas e é superior em magia a um filho que os detesta? É no mínimo surpreendente que qualquer cópia da versão original desse conto tenha sobrevivido às chamas a que frequentemente foi lançada. Beedle estava fora de sintonia com seu tempo ao pregar uma mensagem de amor fraternal aos trouxas.
No início do século XV, a perseguição de bruxos se intensificava por toda a Europa. Muitos na comunidade mágica achavam, com toda a razão, que se oferecer para lançar um feitiço no porco doente do vizinho trouxa equivalia a se oferecer para buscar lenha para sua pira [1]. “Que os trouxas se arranjem sozinhos!”, bradavam os bruxos ao mesmo tempo em que se afastavam cada vez mais dos seus irmãos não-mágicos, um movimento que culminou no Código Internacional de Sigilo em Magia, em 1689, data em que eles entraram por livre e espontânea vontade na clandestinidade.

[1] É verdade que os bruxos e bruxas legítimos tinham razoável experiência em escapar da fogueira, do cepo e da forca (ver meus comentários sobre Lisette de Lapin nas notas sobre “Babbitty, a Coelha, e seu Toco Gargalhante”). Contudo, ocorreram de fato numerosas mortes: Sir Nicholas de Mimsy-Porpington (em vida, um bruxo na corte real e, na morte, o fantasma da Torre da Grifinória) revê sua varinha confiscada antes de ser trancado em uma masmorra, e assim ficou impedido de usar magia para fugir à sua execução. E as famílias bruxas eram particularmente sujeitas a perder membros mais jovens, cuja inabilidade para controlar seus poderes mágicos os tornava conspícuos e vulneráveis aos caçadores de bruxos.

Contudo, sendo as crianças como são, o grotesco caldeirão saltitante cativou sua imaginação. A solução foi eliminar a moral pró-trouxa, mas preservar o caldeirão verruguento, e, já na metade do século XVI, uma nova versão do conto circulava amplamente entre as famílias bruxas. Na história revista, o caldeirão saltitante protege um inocente bruxo dos seus vizinhos armados de archotes, afugentando-os de sua cabana, capturando-os e engolindo-os inteiros. No final da história, quando a panela já consumiu a maioria dos vizinhos, o bruxo obtém, dos poucos aldeões que restaram, a promessa de que o deixarão praticar sua magia em paz. Em troca, ele instrui a panela a devolver as vítimas, que são devidamente arrotadas de suas profundezas, ligeiramente estropiadas. Até hoje, algumas crianças bruxas ouvem apenas esta versão revista contada por seus pais (em geral antitrouxas), e a original, se e quando a lêem, é uma grande surpresa.
Conforme sugeri anteriormente, no entanto, o sentimento pró-trouxa não foi a única razão pela qual “O Bruxo e o Caldeirão Saltitante” atraiu indignação.
À medida que a caça aos bruxos se encarniçava, as famílias bruxas começaram a levar vidas duplas, usando Feitiços de Ocultação para proteger a si mesmas. Por volta do século XVII, qualquer bruxo, homem ou mulher, que confraternizasse com trouxas se tornava suspeito, e até marginalizado em sua própria comunidade. Entre os muitos insultos lançados contra os pró-trouxas (os sugestivos epítetos de “chafurdeiro”, “lambe-bosta” e “baba-ralé” datam desse período), havia a acusação de praticarem uma magia ineficaz ou inferior.
Bruxos influentes da época, como Bruto Malfoy, editor de Feitiçaria Aguerrida, um periódico anti-trouxa, perpetuou o estereótipo de que um bruxo amante de trouxas era tão mágico quanto um bruxo abortado [2].

[2] [O bruxo abortado ou aborto é o filho de pais bruxos que não possui poderes mágicos. Tal ocorrência é rara. Os bruxos e bruxas filhos de pais trouxas são muito mais comuns. JKR]

Em 1675, Bruto escreveu:

Isto podemos afirmar com segurança: qualquer bruxo que demonstre apreciar a sociedade dos trouxas tem uma fraca inteligência e uma mágica tão débil e digna de pena que ele só pode se sentir superior quando se cerca de porqueiros trouxas. Nada é um sinal mais infalível de mágica ineficaz do que a fraqueza para conviver com não-mágicos.

Este preconceito foi gradualmente se extinguindo em face da avassaladora evidência de que alguns dos bruxos [3] mais brilhantes do mundo foram, para usar o termo comum, “amantes dos trouxas”.

[3] Como eu próprio.

A objeção final a “O Bruxo e o Caldeirão Saltitante” ainda hoje permanece viva em certos setores. Beatrix Bloxam (1794-1910), autora do abominável Os Contos do Chapéu-de-Sapo, foi, talvez, quem melhor resumiu a questão.
A Sra. Bloxam acreditava que Os Contos de Beedle, o Bardo prejudicavam as crianças por sua “mórbida preocupação com assuntos horrendos como morte, doença, derramamento de sangue, magia perversa, personagens perniciosos, e efusões e erupções corporais dos tipos mais repugnantes”. A Sra. Bloxam reuniu uma coleção de histórias antigas, inclusive várias de Beedle, e reescreveu-as de acordo com os seus ideais, que, em suas palavras, “incutiam nas mentes puras dos nossos anjinhos, saudáveis pensamentos de felicidade, mantinham o seu doce repouso livre de sonhos maus e protegiam a preciosa flor de sua inocência”.
Lemos no parágrafo final da pura e valiosa reescritura de “O Bruxo e o Caldeirão Saltitante”:

Então a panelinha dourada dançou de prazer — tim tirim tim! — batendo seus pezinhos rosados! Willyzinho tinha curado as barriguinhas dodóis de todas as bonequinhas, e a panelinha ficou tão feliz que se encheu de docinhos para Willyzinho e suas bonequinhas!
— Mas não se esqueça de escovar os seus dentinhos! — gritou a panela.
E Willyzinho abraçou e beijou o caldeirão saltitante e prometeu sempre ajudar as bonequinhas e jamais voltar a ser ranzinza.

O conto da Sra. Bloxam provocou a mesma reação em gerações de crianças bruxas: incontroláveis ânsias de vômito, seguidas por imediatos pedidos para que alguém levasse o livro e o transformasse em pasta.







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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

OS CONTOS DE BEEDLE, O BARDO




1

O Bruxo E O Caldeirão Saltitante


Era uma vez um velho bruxo muito bondoso que usava a magia com generosidade e sabedoria para beneficiar seus vizinhos. Em vez de revelar a verdadeira fonte do seu poder, ele fingia que suas poções, amuletos e antídotos saíam prontos de um pequeno caldeirão a que ele chamava de sua Panelinha da Sorte. De muitos quilômetros ao redor, as pessoas vinham lhe trazer seus problemas, e o bruxo, prazerosamente, dava uma mexida na panelinha e resolvia tudo.
Esse bruxo muito querido viveu até uma idade avançada e, ao morrer, deixou todos os seus bens para o único filho. O rapaz, porém, tinha uma natureza bem diferente da do bom pai. Na sua opinião, quem não sabia fazer mágicas não valia nada, e ele muitas vezes discordara do hábito que o pai tinha de ajudar os vizinhos com sua magia.
Quando o velho morreu, o jovem encontrou escondido no fundo da velha panela um embrulhinho com o seu nome. Abriu-o na expectativa de ver ouro, mas, em lugar disso, encontrou uma pantufa grossa e macia, pequena demais para ele e sem par. Dentro dela, um pedaço de pergaminho trazia a seguinte frase: “Afetuosamente, meu filho, na esperança de que você jamais precise usá-la”.
O filho amaldiçoou a caduquice do pai e atirou a pantufa no caldeirão, decidindo que passaria a usá-lo como lixeira.
Naquela mesma noite, uma camponesa bateu à porta da casa.
— Minha neta apareceu com uma infestação de verrugas, meu senhor. O seu pai costumava preparar um cataplasma especial naquela panela velha...
— Fora daqui! — exclamou o filho — Que me importam as verrugas da sua pirralha?
E bateu a porta na cara da velha.
Na mesma hora, ele ouviu clangores e rumores que vinham da cozinha. O bruxo acendeu sua varinha e abriu a porta, e ali, para seu espanto, viu que brotara um pé de latão na velha panela do pai, e o objeto pulava no meio da cozinha fazendo uma zoada assustadora no piso de pedra. O bruxo se aproximou admirado, mas recuou ligeiro quando viu que a superfície da panela estava inteiramente coberta de verrugas.
— Objeto nojento! — exclamou ele, e, com feitiços, tentou primeiro fazer desaparecer o caldeirão, depois limpá-lo e, por fim, expulsá-lo de casa.
Nenhum dos feitiços, porém, fez efeito, e ele não pôde impedir o caldeirão de segui-lo saltitante para fora da cozinha, e depois subir com ele para o quarto, alternando batidas surdas e estridentes a cada degrau da escada de madeira.
O bruxo não conseguiu dormir a noite toda por causa das batidas da velha panela verrugosa ao lado de sua cama, e, na manhã seguinte, a panela insistiu em acompanhá-lo, aos saltos, à mesa do café-da-manhã.
Plem, plem, plem fazia o pé de latão, e o bruxo ainda nem começara o seu mingau de aveia quando ouviu outra batida na porta.
Havia um velho parado na soleira.
— É a minha velha jumenta, meu senhor — explicou ele — Perdeu-se ou foi roubada, e sem ela não possuo levar os meus produtos ao mercado e minha família passará fome hoje à noite.
— Com fome estou eu agora! — bradou o bruxo, e bateu a porta na cara do velho.
Plem, plem, plem fez o caldeirão no chão com aquele seu único pé de latão, mas agora o estrépito se misturava aos zurros de um jumento e aos gemidos humanos de fome que vinham de suas profundezas.
— Pare! Silêncio! — guinchou o bruxo, mas todos os seus poderes mágicos não conseguiram calar a panela verrugosa, que o seguiu saltitando o dia todo, zurrando e gemendo e clangorando, aonde quer que ele fosse ou o que quer que fizesse.
Naquela noite ouviu-se uma terceira batida na porta, e ali, na soleira, estava parada uma jovem mulher soluçando como se o seu coração fosse partir de dor.
— O meu filhinho está gravemente doente — disse ela — Por favor, pode nos ajudar? Seu pai me disse para vir se tivesse algum pro...
Mas o bruxo bateu a porta na cara da jovem.
E agora a panela atormentadora se encheu até a borda de água salgada e derramou lágrimas por todo o chão enquanto pulava, zurrava, gemia e fazia brotar ainda mais lágrimas.
Embora, pelo resto da semana, nenhum outro aldeão tivesse vindo à cabana do bruxo buscar ajuda, a panela o manteve informado dos seus muitos males. Em poucos dias ela não estava apenas zurrando, gemendo, transbordando, pulando e brotando verrugas, mas também engasgando e tendo ânsias de vômito, chorando como um bebê, ganindo feito um cão e cuspindo queijo estragado, leite azedo e uma praga de lesmas vorazes.


O bruxo não conseguia dormir nem comer com a panela ao seu lado, mas ela se recusava a sumir dali, e ele não podia silenciar nem forçar o caldeirão a parar.
Por fim, não aguentou mais.
— Tragam-me todos os seus problemas, todas as suas preocupações e todas as suas tristezas! — gritou, fugindo noite adentro, com a panela perseguindo-o aos saltos pela estrada que levava à aldeia — Venham! Deixem que eu cure vocês, recupere vocês e console vocês! Tenho a panela do meu pai e vou remediar tudo!
E, com a detestável panela ainda a persegui-lo saltitante, ele correu pela rua principal lançando feitiços para todos os lados.
Dentro de uma casa, as verrugas da garotinha desapareceram enquanto ela dormia. A jumenta perdida foi trazida de um urzal distante e suavemente deixada em seu estábulo. O bebê doente foi umedecido com ditamno e acordou bom e rosado. Em todas as casas em que havia doença e tristeza, o bruxo fez o melhor que pôde, e gradualmente a panela ao seu lado parou de gemer e ter ânsias de vômito, e sossegou, reluzente e limpa.
— E então Panela? — perguntou o bruxo trêmulo, quando o sol começou a despontar.
A panela arrotou o pé de pantufa que ele havia jogado em seu fundo, e permitiu que o bruxo o calçasse em seu pé de latão. Juntos, eles regressaram à casa, os passos da panela finalmente abafados. Mas, daquele dia em diante, o bruxo passou a ajudar os aldeões exatamente como fazia seu pai, antes dele, para que a panela não descalçasse a pantufa e recomeçasse a saltitar.




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terça-feira, 28 de agosto de 2012

OS CONTOS DE BEEDLE, O BARDO




— INTRODUÇÃO —


Os Contos de Beedle, o Bardo é uma coletânea de histórias populares para jovens bruxos e bruxas, contadas há séculos à hora de dormir, daí serem o “Caldeirão Saltitante” e a “Fonte da Sorte” tão conhecidas de muitos alunos de Hogwarts quanto “A Gata Borralheira” e “A Bela Adormecida” das crianças trouxas (não-mágicas).
As histórias de Beedle se assemelham aos nossos contos de fadas sob muitos aspectos, por exemplo, a virtude é normalmente premiada e o vício castigado. Apresentam, porém, uma diferença evidente. Nos contos de fadas trouxas, é comum a magia estar na raiz dos problemas do herói ou da heroína: a bruxa malvada envenenou a maçã, ou fez a princesa mergulhar em um sono de cem anos, ou transformou o príncipe em uma fera horrenda. Nos Contos de Beedle, o Bardo, ao contrário, encontramos heróis e heroínas que, embora capazes de realizar mágicas, descobrem que lhes é quase tão difícil resolver seus problemas quanto o é para nós, trouxas. As histórias de Beedle ajudaram gerações de pais bruxos a explicar este doloroso fato da vida aos seus filhinhos: a magia tanto causa dificuldades quanto as resolve.
Outra notável diferença entre estas fábulas e suas correspondentes trouxas é que as bruxas de Beedle são muito mais ativas quando se trata de partir em busca da fortuna do que as heroínas dos nossos contos de fadas. Asha, Altheda, Amata e Babbitty, a Coelha, são mulheres que tomam o destino em suas próprias mãos, em vez de tirar um longo cochilo ou esperar que alguém lhes devolva o sapatinho perdido. A exceção à regra, a donzela sem nome de “O Coração Peludo do Mago”, age de modo semelhante ao de uma princesa de conto de fadas, mas o conto não termina com o habitual “e viveram felizes para sempre”.
Beedle, o Bardo viveu no século XV, e grande parte de sua vida permanece envolta em mistério. Sabemos que nasceu em Yorkshire, e a única xilogravura que chegou até nós mostra que ele usava uma barba excepcionalmente luxuriante. Se suas histórias refletem com fidelidade suas opiniões, ele inclusive gostava de trouxas, e os considerava mais ignorantes do que malévolos, desconfiava da magia negra, e acreditava que os piores excessos da bruxidade decorriam de suas características demasiado humanas de crueldade, apatia ou arrogante desperdício dos próprios talentos. Os heróis e heroínas que saem vitoriosos em suas histórias não são os que têm a magia mais poderosa, mas os que demonstram maior bondade, bom-senso e inventividade.
Um bruxo dos tempos modernos que defendeu ideias muito semelhantes foi, naturalmente, o Professor Alvo Percival Wulfrico Brian Dumbledore, Ordem de Merlim, Primeira Classe, Diretor da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, Chefe-Supremo da Confederação Internacional de Bruxos e Bruxo-Presidente da Suprema Corte dos Bruxos. Apesar das coincidências nos pontos de vista, foi uma surpresa descobrir uma coleção de notas sobre “Os Contos de Beedle, o Bardo”, entre os muitos documentos que Dumbledore legou em testamento aos Arquivos de Hogwarts. Se tais notas foram escritas para seu próprio prazer ou para futura publicação, jamais saberemos, recebemos, contudo, a gentil permissão da Profª. Minerva McGonagall, hoje diretora de Hogwarts, para incluí-las, com uma novíssima tradução dos contos feita por Hermione Granger.
Esperamos que as impressões do Professor Dumbledore, que incluem comentários sobre a história bruxa, reminiscências pessoais e informações reveladoras sobre elementos-chave de cada história, possam contribuir para que uma nova geração de leitores bruxos e trouxas aprecie “Os Contos de Beedle, o Bardo”.
Parece-me justo acrescentar uma pequena observação aos comentários do Professor Dumbledore. Até onde foi possível determinar, as notas foram escritas uns dezoito meses antes dos trágicos acontecimentos que se desenrolaram no alto da Torre da Astronomia de Hogwarts. Aqueles que estão familiarizados com a história da guerra bruxa mais recente (todos que leram os sete volumes da vida de Harry Potter, por exemplo) terão percebido que o Professor Dumbledore revela um pouco menos do que sabe — ou suspeita — sobre a última história deste livro. A razão de possíveis omissões talvez resida na afirmação que fez Dumbledore, há alguns anos, a respeito da verdade, para o seu aluno mais famoso: “É uma coisa bela e terrível, e portanto deve ser tratada com grande cautela”.
Concordemos ou não com ele, há que desculpá-lo por desejar proteger os futuros leitores das tentações em que ele mesmo caiu e pelas quais pagou um preço terrível.

J. K. Rowling
2008




— OBSERVAÇÃO SOBRE AS NOTAS DE RODAPÉ —


Tudo indica que o Professor Dumbledore escreveu para um público bruxo, por isso incluí aqui e ali a explicação de um termo ou fato sobre os quais os leitores trouxas talvez precisem de esclarecimento.

J.K.R.






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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Os Contos de Beedle, o Bardo - SUMÁRIO





— SINOPSE —


Os Contos de Beedle, o Bardo é uma coletânea de histórias populares para jovens bruxos e bruxas, contadas há séculos à hora de dormir, daí serem o “Caldeirão Saltitante” e a “Fonte da Sorte” tão conhecidas de muitos alunos de Hogwarts quanto “A Gata Borralheira” e “A Bela Adormecida” das crianças trouxas (não-mágicas). Em “Harry Potter e as Relíquias da Morte”, esse pequeno livro teve grande importância no enredo, e agora você vai se divertir com outras quatro histórias reunidas por Beedle, todas elas comentadas pelo ilustre e renomado ex-diretor de Hogwarts, Alvo Dumbledore.



— SUMÁRIO —





CONTO 1


CONTO 2


CONTO 3


CONTO 4


CONTO 5



— OUTRAS CAPAS —






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